STJ promove avanço significativo na consolidação da herança digital

A 3ª Turma do STJ (Superior Tribunal de Justiça), sob a relatoria da ministra Nancy Andrighi, proferiu recente e relevante decisão no julgamento do Recurso Especial nº 2.124.424, que representa um avanço significativo na consolidação da herança digital no ordenamento jurídico brasileiro.

Ao enfrentar a questão do acesso a bens digitais protegidos por senha, o colegiado reconheceu que, nos casos em que o falecido não compartilhou senhas ou credenciais com os herdeiros, o acesso às informações digitais deve ocorrer mediante a instauração de um incidente processual próprio, apensado ao inventário, conduzido pelo juiz da causa e com apoio técnico de um profissional especializado — o chamado inventariante digital.

A decisão, inédita no âmbito do STJ, vai ao encontro de uma linha interpretativa que vem sendo defendida por parte da doutrina especializada há mais de cinco anos, no sentido de que a transmissibilidade dos bens digitais não pode ser tratada de forma automática, devendo observar os limites impostos pela natureza jurídica dos ativos e pelos direitos da personalidade. Trata-se de um importante passo rumo à compatibilização entre o direito sucessório tradicional e as novas expressões do patrimônio eletrônico.

Lacuna legislativa e necessidade de construção jurisprudencial

O ponto de partida da decisão é o vácuo normativo que ainda permeia a sucessão de bens digitais. Embora o Código Civil disponha sobre a transmissibilidade de bens e direitos, o legislador de 2002 não poderia antever a complexa dimensão dos ativos intangíveis que hoje integram a esfera patrimonial e existencial das pessoas.

Nesse cenário, o papel do Poder Judiciário assume caráter integrativo e interpretativo, buscando preencher a lacuna legislativa mediante a aplicação analógica e sistemática dos princípios constitucionais e civis. A ministra Nancy Andrighi, em seu voto, destacou que a inexistência de previsão legal não pode conduzir à inefetividade da sucessão, sob pena de frustrar o direito dos herdeiros à integralidade do acervo hereditário, previsto no artigo 5º, inciso XXX, da Constituição.

Todavia, a decisão não ignora os limites impostos pelos direitos da personalidade. O acesso direto aos conteúdos digitais do falecido poderia implicar violação à sua intimidade post mortem, ou mesmo à privacidade de terceiros. Assim, a solução processual delineada pelo STJ — o “incidente de identificação, classificação e avaliação de bens digitais” — representa uma forma prudente e juridicamente segura de preservar a dignidade humana também no contexto pós-morte.

Coerência com teoria da transmissibilidade condicionada

A proposta delineada pela ministra Nancy Andrighi revela-se em plena consonância com a teoria da transmissibilidade condicionada dos bens digitais, construída no âmbito doutrinário contemporâneo. Segundo essa perspectiva, a transmissibilidade não decorre de forma absoluta da morte, mas depende da natureza e da finalidade do bem digital em questão.

Assim, enquanto os bens digitais de caráter patrimonial ou econômico — como criptoativos, créditos em plataformas e contas monetizáveis — integram o acervo sucessório e são plenamente transmissíveis, os bens de caráter personalíssimo, ligados à identidade, à intimidade e à expressão da personalidade do falecido, devem permanecer intransmissíveis, sob pena de violação à sua esfera existencial.

Essa distinção encontra amparo não apenas na dogmática civil, mas também nos princípios constitucionais que informam o sistema jurídico brasileiro, especialmente o da dignidade da pessoa humana e o da proteção à intimidade. Ao determinar que o acesso aos aparelhos eletrônicos seja mediado por um profissional especializado, sob controle judicial, o STJ reafirma a necessidade de ponderação entre o direito dos herdeiros e os direitos da personalidade, promovendo uma sucessão que respeite a integridade moral do falecido.

Ponderação entre direito sucessório e da personalidade

O núcleo da decisão está justamente na ponderação entre dois conjuntos de direitos fundamentais: de um lado, o direito dos herdeiros de suceder a totalidade dos bens e direitos do falecido; de outro, os direitos da personalidade, que subsistem mesmo após a morte.

A ministra Nancy Andrighi enfatizou que autorizar empresas a desbloquear dispositivos eletrônicos de pessoas falecidas, sem controle judicial, configuraria potencial violação da intimidade e da vida privada, o que afrontaria o artigo 5º, incisos X e XII, da Constituição. A proposta de criação de um incidente processual, portanto, não constitui ativismo judicial, mas sim uma resposta hermenêutica legítima diante de um contexto tecnológico em constante transformação e ainda não regulamentado.

Com isso, o tribunal reconhece que o patrimônio digital integra o espólio, mas que seu acesso deve observar limites éticos e processuais, resguardando conteúdos cuja exposição possa atingir a imagem, a honra ou a memória do falecido.

Consolidação de novo paradigma sucessório

O julgamento do REsp 2.124.424/SP marca um ponto de inflexão no tratamento jurídico da herança digital protegida por senha. A decisão não apenas supre uma lacuna legislativa, mas inaugura um novo paradigma hermenêutico, que reconhece a dualidade dos bens digitais — simultaneamente patrimoniais e existenciais — e propõe uma solução de equilíbrio entre transmissibilidade e proteção da personalidade.

Ao admitir a criação do incidente de identificação, classificação e avaliação de bens digitais, o STJ reafirma a função integradora do Judiciário e estabelece um modelo processual compatível com a complexidade das relações digitais contemporâneas.

Em síntese, a decisão consolida a compreensão de que a herança digital é transmissível, mas condicionada: transmissível quanto aos bens de valor econômico, e intransmissível quando envolverem aspectos personalíssimos da identidade e da intimidade do falecido. Além disso, reforça-se que o acesso aos conteúdos protegidos por senha ou credenciais pessoais deve observar controle judicial, mediante incidente processual próprio, de modo a conciliar o direito sucessório com a proteção da privacidade e da autodeterminação informativa. Trata-se de um entendimento que projeta o Direito Sucessório para o século 21, mantendo como norte a dignidade da pessoa humana — princípio que, mesmo diante da morte, continua a irradiar efeitos sobre todas as dimensões da vida jurídica.

Por: Amanda Martins | OAB/SC 60.455 | Bertol Sociedade de Advogados