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A audiência pública realizada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) para debater o Tema 1.198 dos recursos repetitivos mostrou que, apesar do reconhecimento da necessidade de coibir a litigância predatória, representantes da advocacia têm o receio de que medidas com esse objetivo possam embaraçar o exercício legítimo da profissão, enquanto outros debatedores ressaltaram o cuidado que se deve ter com a defesa de interesses coletivos. O debate ocorreu nesta quarta-feira (4).
O Tema 1.198 diz respeito ao poder geral de cautela do juízo diante de ações com suspeita de litigância predatória, que ocorre quando o Judiciário é provocado mediante demandas massificadas com intenção fraudulenta.
A afetação do tema pela Segunda Seção decorreu de um incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) na Justiça de Mato Grosso do Sul, em razão da grande quantidade de processos supostamente abusivos relativos a empréstimos consignados. Com o julgamento do repetitivo, a seção vai definir se o magistrado, em tais situações, pode exigir que a parte autora emende a petição inicial com documentos capazes de lastrear minimamente as suas pretensões, como procuração atualizada, declaração de pobreza e de residência, cópias de contrato e extratos bancários.
A audiência pública foi convocada pelo ministro Moura Ribeiro e teve a presença de 35 expositores – pesquisadores independentes, representantes de instituições públicas e de entidades ligadas a setores interessados. A íntegra da audiência está disponível no canal do STJ no YouTube.
Antes de iniciar os trabalhos, Moura Ribeiro fez uma homenagem ao ministro Paulo de Tarso Sanseverino, falecido no dia 8 de abril deste ano, o qual definiu como o “grande líder dos processos repetitivos” e responsável por estimular a realização de audiências públicas na corte.
O primeiro a falar na audiência foi Eduardo Foz Mange, representante da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP), que expressou o receio de prejuízo à advocacia: “O conceito está muito aberto, o que poderia atingir advogados que atuam de forma correta. É importante destacar que já há mecanismos de combate à litigância predatória”.
Em contraponto, a juíza Vanessa Ribeiro Mateus, em nome da Associação Paulista de Magistrados (Apamagis), disse que a litigância predatória “drena recursos do Poder Judiciário que poderiam ser utilizados efetivamente para melhor distribuição da justiça”.
Representando o Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC), o advogado Igor Rodrigues Britto declarou que o debate não pode levar a uma conclusão que prejudique milhares de consumidores, que só recorrem ao Judiciário depois de tentar resolver os problemas diretamente com as empresas. “Os maiores ‘predadores’ da Justiça brasileira são bancos, empresas de telecomunicações, concessionárias e seguradoras”, afirmou.
Walter José Faiad de Moura, representante do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), ponderou que, em um país onde há produtos e serviços caros e de péssima qualidade, o Judiciário deve melhorar sua capacidade de fluidez na solução das demandas. “Aqui existe uma cortina de fumaça perfeita. Não devemos falar em extinguir litígio, mas sim em resolver problemas. A falácia da gestão de números está sendo usada e capturada por grandes fornecedores, que fazem do Judiciário um balcão estendido da sua incompetência”, afirmou.
O advogado Luiz Fernando Pacheco, representando a OAB-SP, lamentou que juízes partam do pressuposto de que os advogados estão agindo de má-fé. “Deveria ser ao contrário: presume-se a boa-fé do advogado e, caso venha a ser provado o contrário, que ele seja punido. Não podemos permitir que toda uma categoria seja prejudicada por uma pequena parcela de maus profissionais”.
Já a advogada Auridea Pereira Loiola Dallacqua, da OAB-TO, destacou que a entidade tem competência exclusiva para a análise da conduta ética dos profissionais, não se podendo admitir a “criminalização da advocacia”, nem que haja punição a advogados por supostas infrações que não passaram pelo crivo do órgão competente.
O Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), representado pelo professor de direito da Universidade São Paulo (USP) Paulo Henrique dos Santos Lucon, diferenciou litigância repetitiva de litigância abusiva: a primeira é um fenômeno da sociedade de massa importante na defesa dos direitos dos consumidores, enquanto a segunda deve ser combatida. “O juiz deve fazer um controle inicial dos documentos indispensáveis para comprovação da lide”, completou.
O painel inicial teve ainda a participação de Nicolas Santos Carvalho Gomes, da Associação dos Advogados Defensores do Consumidor Amazonense (AADCAM), e de Luciano Ramos de Oliveira, da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil (ABPC).
O procurador-geral da União, Marcelo Eugênio Feitosa Almeida, representando a Advocacia-Geral da União (AGU), propôs uma distinção clara entre a litigância predatória e a defesa de direitos homogêneos. “Demandas pulverizadas não significam que são demandas predatórias. Há que se fazer uma distinção honesta”, salientou.
Ele informou que a AGU vem utilizando a gestão de conhecimento para otimizar as demandas judiciais, sobretudo em casos de ações coletivas envolvendo direitos e benefícios sociais. Na opinião do procurador, o magistrado pode usar o poder geral de cautela para detectar a litigância predatória, inclusive com a determinação fundamentada de apresentação de documentos.
Na mesma linha, o conselheiro Marcos Vinícius Jardim Rodrigues, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), disse que, atualmente, há um grupo de trabalho que estuda a matéria na intenção de estabelecer conceitos, diagnósticos e condutas para os magistrados no enfrentamento da litigância temerária. “As soluções para esse fenômeno não podem se afastar da legalidade. O poder geral de cautela do magistrado deve ser atuante, mas em situações concretas e a partir de decisões devidamente fundamentadas”, declarou.
No painel dedicado aos pesquisadores independentes, Alexandre Rodrigues de Sousa, doutorando em direito processual pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), admitiu a possibilidade de o juiz exigir documentos complementares para evitar a litigância predatória, mas ponderou que a medida não pode ser excessivamente formalista e burocrática, de forma a prejudicar o acesso dos litigantes ocasionais e hipossuficientes.
Em seguida, o professor de direito Luciano Benetti Timm, da Fundação Getulio Vargas de São Paulo, defendeu a racionalização dos processos: “Gasta-se cem vezes mais em soluções de disputas judiciais do que em saneamento básico, então a gente precisa ter alguma racionalização. Precisamos de melhor gestão dos processos, buscando eficiência”.
Também se manifestaram os professores Luiz Guilherme Eliano Pinto, especialista em processo constitucional pela Universidade de Fortaleza (Unifor), e Denner de Barros e Mascarenhas Barbosa, especialista em direito civil pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).
No painel seguinte, a advogada Sofia Temer, representante do banco Santander, observou que a litigância predatória é caracterizada pela utilização de documentos falsos, obtidos, muitas vezes, sem a ciência da suposta parte. “Estudos mostram que, em 99% desses casos, o advogado pede dispensa da audiência inicial de conciliação. Esse pedido é intencional para evitar que a parte descubra que uma mesma procuração foi usada em dezenas de ações contra toda sorte de empresas, com petições iniciais idênticas”, ressaltou a advogada.
Representando a Federação Brasileira de Bancos (Febraban), a advogada Heloísa Scarpelli Soler Marques comentou que o caso submetido ao rito dos repetitivos aborda o crédito consignado, operação financeira que gera inúmeros processos baseados em documentos fraudulentos, os quais servem apenas para a obtenção de vantagens indevidas.
O Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia e de Serviço Móvel, Celular e Pessoal (Conexis Brasil Digital) se manifestou por meio do advogado Luiz Rodrigues Wambier. Segundo ele, a tese jurídica que poderá resultar do julgamento do Tema 1.198 concretiza normas fundamentais do direito processual civil voltadas à garantia da eficiência na prestação judicial.
“Acesso à justiça, mais do que o direito de ajuizar uma ação, é o direito a uma ordem jurídica justa. Nesse contexto, o magistrado tem o poder-dever de sanear o processo, inclusive exigindo a juntada de documentos essenciais para o prosseguimento da ação”, afirmou.
Também falaram no painel a Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), representada pelo advogado André Jacques Luciano Uchôa Costa, e a International Air Transport Association (IATA), representada pelo advogado Marcelo Pedroso.
No encerramento do debate, a juíza Janine Rodrigues de Oliveira Trindade, do Centro de Inteligência do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, apresentou um estudo segundo o qual as principais vítimas da litigância predatória são pessoas vulneráveis.
“Em quase 90% da nossa mostra, a parte autora recebia até um salário mínimo. Além disso, 96% eram idosos, mas ainda encontramos a condição de indígenas, de assentados, de analfabetos”, relatou. Foi nesse contexto, segundo ela, que os juízes começaram a determinar emendas à petição inicial – providência que está no centro da controvérsia do Tema 1.198.
Fonte: STJ Noticias
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