A requisição administrativa em tempos de calamidade pública

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A requisição administrativa em tempos de calamidade pública

Escrito por Bertol Sociedade de Advogados

28/04/2020

A pandemia do coronavírus trouxe à tona o instituto pouco falado da requisição administrativa. Com assento constitucional (art. 5º, XXV), a requisição administrativa é o direito de o poder público usar de propriedade particular em caso de iminente perigo público. Como contrapartida, assegura-se ao proprietário do bem indenização ulterior, caso haja dano.

Na esteira da Lei Federal 13.979/2020 que, ao instituir as medidas da União para o enfrentamento da saúde pública contra o coronavírus, estabeleceu a possibilidade de as autoridades adotarem a requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas (art. 3º, VII), inúmeros decretos estaduais e municipais têm sido editados para respaldar a utilização de tal prerrogativa por seus respectivos governantes.

Parece inexistir dúvida de que o País está diante de iminente perigo público, o que, em teoria, seria suficiente para satisfazer o requisito constitucional indispensável para a intervenção estatal na propriedade particular em benefício de finalidades coletivas. Ocorre que, levando-se em conta os prejuízos imediatos causados àqueles que têm os seus bens, serviços ou propriedade requisitados, o Poder Público somente pode se valer de tal prerrogativa em última hipótese, isto é, após analisar as alternativas possíveis e verificar inexistir opção menos gravosa.

Observe-se que a mesma Lei 13.979/2020 tornou dispensável a licitação para aquisição de bens, serviços e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus. A desnecessidade de licitação é temporária, aplicando-se enquanto perdurar a situação de emergência. E sequer é necessária a elaboração de estudos preliminares, bastando a apresentação de termo de referência simplificado ou de projeto básico também simplificado (art. 4º-E).

Portanto, é lógica a conclusão de que o gestor público somente tem a prerrogativa de lançar mão da intervenção na propriedade privada se demonstrar a inviabilidade de realizar a contratação direta, com dispensa de licitação, daquela pessoa natural ou jurídica da qual os bens ou serviços se pretende expropriar.

Infelizmente, contudo, não é o que tem sido visto. Cite-se como bom exemplo a requisição, pela União, de ventiladores de UTI já comprados pelo município de Recife. Foi necessária uma ordem judicial da Presidência do TRF-5, prolatada no último domingo (22), para que a empresa contratada pela prefeitura não atendesse à requisição da União e entregasse os respiradores ao município de Recife. Ainda em Pernambuco, no último dia 19, o governo do estado entrou em uma loja de produtos hospitalares na capital para recolher máscaras descartáveis a fim de abastecer a rede estadual de saúde.

O previsível pretexto do caráter emergencial e, por consequência, da impossibilidade de se aguardar a realização dos procedimentos prévios à dispensa de licitação raramente se justificarão quando se tem em vista que a Lei 13.979/2020 realmente simplificou o conteúdo do respectivo termo de referência ou projeto básico antecedente à contratação direta. Basta um passar de olhos nos requisitos descritos no art. 4º-E para que isto seja confirmado. Não é exagero retórico dizer que o trabalho e o tempo necessários para proceder à requisição administrativa e à dispensa licitatória são relativamente idênticos.

É abusivo, portanto, além de inadequado e arbitrário, o ato do gestor público que se aproveita do estado de calamidade pública existente para requisitar bens e serviços – especialmente os relacionados à área de saúde –, postergando a contraprestação devida ao requisitado para data futura e incerta, quando poderia muito bem realizar a contratação direta da mesma pessoa natural ou jurídica. Tal conduta, nessas circunstâncias, deve ser combatida pelas vias adequadas, sendo papel do Poder Judiciário coibir os excessos a que temos assistido.

Fonte: O Estadão – Política | Escrito por: Giuseppe Giamundo Neto, doutorando e mestre em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da USP.

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