A possibilidade de recuperação judicial por associações e fundações representa um avanço no Direito Civil e Empresarial brasileiro, desafiando a tradicional classificação legal dessas entidades. A Lei n. 11.101/2005 (Lei de Falências e Recuperação de Empresas) foi originalmente criada para socorrer o devedor empresário, visando à preservação da empresa, de sua função social e ao estímulo da atividade econômica.
Associações e fundações são categorizadas pelo Código Civil de 2002 (CC/2002) como pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos. As associações (Art. 53 do CC) são uniões de pessoas com fins não econômicos, e embora possam exercer atividade produtiva, o lucro é vedado de ser partilhado. As fundações (Art. 62 do CC) são patrimônios afetados a fins sociais ou nobres. O limite clássico reside no fato de que, como entidades não empresariais, sua crise financeira deveria, em tese, ser tratada pela insolvência civil, que historicamente leva à liquidação.
Contudo, essa rigidez formal tem sido superada pela aplicação dos princípios da função social e da analogia jurídica. Na prática, muitas dessas entidades, como hospitais filantrópicos ou grandes escolas, adquirem uma estrutura econômica relevante, gerando empregos e prestando serviços essenciais à coletividade. A falência dessas instituições causaria um dano social significativo.
O entendimento moderno busca proteger a função social da atividade, reconhecendo que a recuperação judicial é o mecanismo que, por analogia, melhor se adapta a crises que exigem a continuidade da fonte produtora e a manutenção de serviços essenciais. A jurisprudência tem admitido a recuperação judicial para essas entidades quando sua paralisação resulta em prejuízo para a sociedade.
A Quarta Turma do STJ, por exemplo, em julgados como o proferido no TP 3.654/DF processo que traz o caso do Instituto Educacional Metodista, já admitiu a legitimidade de associações civis sem fins lucrativos para requererem recuperação judicial.
O Grupo Educação Metodista, composto por diversas associações civis sem fins lucrativos mantenedoras de grandes instituições de ensino (universidades e colégios), ingressou com pedido de recuperação judicial. O caso chegou ao STJ, onde a Quarta Turma proferiu decisões que, em juízo precário de tutela provisória (AgInt no TP 3.654/DF), reconheceram a plausibilidade do direito e autorizaram o prosseguimento da recuperação judicial.
O cerne dessa decisão reside na adoção de um entendimento funcionalista de empresa, conforme o voto do Ministro Luis Felipe Salomão (vencedor no Agravo Interno), que se desdobra em três pontos principais:
Estrutura Empresarial na Prática: O colegiado reconheceu que, embora não distribuam lucros aos seus associados, as associações civis de grande porte, como as que compõem o Metodista, “acabam se estruturando como verdadeiras empresas, do ponto de vista econômico”. Elas exercem uma atividade econômica organizada para a produção e circulação de serviços essenciais, neste caso, a educação, que envolve gestão complexa de ativos, empregos e passivos.
Função Social e Dano Social: O argumento central para a admissão foi a proteção da função social da atividade. A paralisação das atividades do Grupo Metodista resultaria em risco de grave lesão e de difícil reparação (periculum in mora), afetando milhares de estudantes, professores, funcionários e credores. Nesse contexto, a recuperação judicial, ao buscar a manutenção da fonte produtora e do emprego, seria o instrumento jurídico mais adequado para tutelar o interesse social, alinhando-se ao Art. 47 da LREF, que prioriza a preservação da empresa e sua função social.
Superação do Rótulo Formal: O julgado demonstrou uma abertura em relação ao Art. 1º da LREF, que restringe a recuperação ao empresário e à sociedade empresária. O foco foi deslocado da natureza jurídica formal do devedor (associação civil, no caso) para a natureza da atividade por ele exercida e seu impacto social e econômico. A decisão sugere que o conceito de empresa, para fins de recuperação, deve ser interpretado de forma analógica ou funcional, abrangendo aqueles entes que, embora formalmente não-empresários, possuem relevância econômica e social que justifica o socorro estatal.
Apesar deste precedente favorável da Quarta Turma no caso Metodista, é fundamental ressaltar que a posição do STJ não é uníssona. Julgados mais recentes da Terceira Turma têm reforçado a interpretação literal da lei, negando a recuperação judicial a outras fundações e associações e mantendo o debate sobre a legitimidade ativa dessas entidades no centro do Direito Empresarial brasileiro.
Por: Tuan Larsen Comin | Estagiário | Bertol Sociedade de Advogados
