A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial n.º 2.089.913/MA, reafirmou com precisão os contornos da teoria finalista mitigada, afastando a aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) em litígio travado entre duas empresas de grande porte. O caso envolveu a Brazil Marítima Ltda., operadora portuária, que ajuizou ação de indenização contra a Liebherr Brasil Ltda., fabricante de guindastes, em razão de um incêndio em equipamento adquirido para uso em sua atividade-fim.
Embora o Tribunal de Justiça do Maranhão tenha reconhecido a vulnerabilidade técnica da autora e aplicado o CDC com base na teoria finalista mitigada, o STJ reformou a decisão. A Ministra Daniela Teixeira, relatora do recurso, sustentou que não basta a alegação genérica de vulnerabilidade: é necessária a comprovação concreta e excepcional de hipossuficiência técnica, jurídica ou econômica, ônus que compete à parte que invoca tal proteção.
O ponto central da controvérsia residiu na caracterização (ou não) da autora como destinatária final do bem, nos termos do artigo 2º do CDC. A jurisprudência da Corte já pacificou que o conceito de destinatário final, no âmbito da teoria finalista, abarca apenas aquele que retira o bem ou serviço da cadeia produtiva e o consome em sentido estrito. Excepcionalmente, admite-se o alargamento desse conceito — daí o adjetivo “mitigada” — desde que demonstrada efetiva vulnerabilidade.
No caso em exame, a operadora portuária adquiriu o guindaste justamente para incorporá-lo à sua estrutura operacional, ou seja, como instrumento de produção e exercício de sua atividade econômica principal. Nessas hipóteses, a lógica empresarial e a igualdade de condições técnicas entre as partes impõem o afastamento das normas protetivas do direito do consumidor, inclusive quanto à inversão do ônus da prova e à responsabilidade objetiva do fornecedor.
A decisão se alinha ao espírito da Lei da Liberdade Econômica, que consagra o direito à livre estipulação dos negócios jurídicos empresariais, com aplicação subsidiária das normas de ordem pública. Essa diretriz prestigia a autonomia da vontade e reconhece a capacidade plena das empresas para gerir seus riscos e assumir responsabilidades contratuais em bases paritárias.
O acórdão também rechaça a tendência expansionista de aplicação do CDC em relações empresariais travadas entre entes de porte e expertise equivalentes. O perigo de banalizar a vulnerabilidade técnica pode levar à erosão do sistema protetivo consumerista, desviando-o de sua finalidade precípua: amparar o hipossuficiente real, o consumidor fragilizado diante do poder técnico, informacional ou econômico do fornecedor.
O precedente, portanto, oferece importante baliza para a segurança jurídica nas relações empresariais. Em um cenário onde é cada vez mais comum a tentativa de instrumentalizar o CDC como meio de reequilibrar litígios entre empresas, o STJ resgata a coerência interpretativa ao reafirmar que a vulnerabilidade não pode ser presumida — deve ser provada.
Trata-se, enfim, de um freio necessário a distorções hermenêuticas e um passo firme na construção de um direito contratual mais racional, previsível e aderente às premissas da boa-fé objetiva, da livre iniciativa e da função social dos contratos empresariais. A proteção ao consumidor, valiosa e indispensável, não pode ser banalizada a ponto de interferir nas dinâmicas legítimas das relações entre agentes econômicos experientes, maduros e plenamente capazes de negociar em pé de igualdade.
RECURSO ESPECIAL Nº 2089913 – MA
Por: Tomás Meireles Cardosol | OAB/SC 59.969A | Bertol Sociedade de Advogados