STJ define prevalência do CDC sobre a Lei do Distrato em contratos de compra e venda de imóveis

No último dia 2 de setembro de 2025, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça concluiu um julgamento paradigmático que encerra anos de debates sobre a aplicação da Lei nº 13.786/2018, conhecida como Lei do Distrato, em contraste com o Código de Defesa do Consumidor, nos contratos de compra e venda de imóveis. A controvérsia existia porque a Lei do Distrato trouxe disposições detalhadas sobre os efeitos do inadimplemento do adquirente, estabelecendo limites de retenção, descontos adicionais e prazos diferenciados para a devolução de valores, mas sem qualquer menção à proteção consumerista já consolidada no ordenamento pelo CDC. Isso gerava a dúvida central: diante de um conflito aparente entre a legislação especial setorial e o CDC, qual deveria prevalecer quando a relação contratual configurasse relação de consumo? O julgamento, que reuniu quatro recursos especiais de grande relevância e se prolongou por mais de um ano, foi conduzido pela relatoria da ministra Nancy Andrighi, cujo voto foi seguido pela maioria, definindo que o CDC deve prevalecer sobre a Lei do Distrato, por se tratar de norma mais especial, voltada justamente para proteger a parte vulnerável da relação, e por contar com fundamento constitucional no artigo 5º, inciso XXXII, da Carta Magna.

A decisão estabeleceu pontos fundamentais que impactam diretamente o mercado imobiliário. Ficou assentado que, em caso de rescisão contratual por iniciativa do comprador, a retenção não poderá ultrapassar o patamar de 25% das parcelas pagas, já englobando nesse limite a cláusula penal, a comissão de corretagem e demais despesas administrativas, ressalvada apenas a possibilidade de cobrança de taxa de fruição quando o imóvel for edificado e não houver cláusula penal em valor equivalente ao aluguel de mercado. Outro aspecto de grande relevância foi a reafirmação da Súmula 543 do STJ, garantindo que a devolução dos valores ao consumidor deve ocorrer de forma imediata, e não parcelada ou diferida para após a conclusão da obra, como previa a Lei do Distrato. Entendeu-se, nesse ponto, que a restituição tardia ou em parcelas constitui prática abusiva, vedada pelos artigos 39 e 51 do CDC. Também foi afastada a possibilidade de a soma de descontos autorizados pela Lei do Distrato levar à perda substancial ou mesmo total das prestações pagas, hipótese expressamente rechaçada pelo artigo 53 do Código de Defesa do Consumidor.

O entendimento traz a lógica de que a legislação consumerista é de ordem pública e interesse social, não podendo ser suprimida ou esvaziada por leis setoriais posteriores. Se fosse admitido o contrário, abrir-se-ia um perigoso precedente que permitiria que qualquer setor regulado editasse normas afastando a aplicação do CDC, o que comprometeria a própria essência da proteção constitucional ao consumidor. Com a decisão, fica claro que o Código de Defesa do Consumidor funciona como uma camada protetiva adicional às legislações específicas do mercado, cabendo sempre ser observado quando a relação contratual envolver comprador em situação de vulnerabilidade.

Para construtoras, incorporadoras e loteadoras, a necessidade de adequação contratual é imediata, pois cláusulas que ultrapassem os limites fixados pelo STJ tendem a ser declaradas nulas em eventual disputa judicial. Para os consumidores, trata-se de uma vitória significativa, pois garante maior previsibilidade, equilíbrio e justiça nas relações contratuais, evitando perdas desproporcionais e assegurando a pronta devolução de valores investidos. Do ponto de vista do Direito Privado, o julgamento representa um divisor de águas, pois consolida entendimentos que vinham sendo questionados desde a entrada em vigor da Lei do Distrato em 2018 e agora encontram respaldo firme na jurisprudência superior. Em síntese, a decisão reafirma a função essencial do Código de Defesa do Consumidor como instrumento de justiça social, resguardando o comprador diante de práticas abusivas e fortalecendo a segurança jurídica em um setor de enorme relevância econômica e social como o mercado imobiliário.

Por: Tomás Meireles Cardosol | OAB/SC 59.969A | Bertol Sociedade de Advogados