Função Social da Propriedade e a Usucapião

A propriedade, no ordenamento jurídico brasileiro, não é um direito absoluto. Conforme previsto no art. 5º, XXIII, da Constituição Federal de 1988, “a propriedade atenderá a sua função social”. Esse princípio estabelece um equilíbrio entre o direito individual do proprietário e o interesse coletivo, condicionando o uso da propriedade ao cumprimento de sua destinação social, econômica e ambiental.

Nesse contexto, a usucapião se apresenta como um dos instrumentos mais relevantes do Direito Civil, permitindo que a posse contínua, pacífica e com animus domini seja convertida em propriedade plena. Trata-se de um modo originário de aquisição, conferindo ao possuidor um novo título dominial, livre de vícios ou ônus anteriores, com eficácia erga omnes e reconhecimento no Registro de Imóveis.

A legislação brasileira contempla diferentes espécies de usucapião, adaptadas a situações específicas, conforme previsto no Código Civil (Lei nº 10.406/2002) e na Constituição Federal:

• Usucapião Extraordinária – Art. 1.238, CC

Requer a posse ininterrupta e sem oposição por 15 anos, independentemente de justo título ou boa-fé. O prazo pode ser reduzido para 10 anos se o possuidor houver estabelecido moradia habitual ou realizado obras ou serviços de caráter produtivo.

• Usucapião Ordinária – Art. 1.242, CC

Necessita de justo título e boa-fé, com posse por 10 anos, podendo ser reduzido para 5 anos se o imóvel for utilizado como moradia ou houver investimentos de caráter social ou econômico relevantes.

• Usucapião Especial Urbana – Art. 183, CF e Art. 1.240, CC

Destina-se ao possuidor de área urbana de até 250m², utilizada para moradia própria ou de sua família, por 5 anos ininterruptos, sem oposição e sem ser proprietário de outro imóvel.

• Usucapião Especial Rural – Art. 191, CF e Art. 1.239, CC

Aplica-se à posse de área rural de até 50 hectares, por pessoa que nela resida e a torne produtiva, pelo prazo de 5 anos contínuos e sem oposição, não sendo titular de outra propriedade rural ou urbana.

• Usucapião Familiar – Art. 1.240-A, CC

Confere a propriedade àquele que permanece no imóvel após o abandono do lar pelo ex-cônjuge ou companheiro, por 2 anos ininterruptos, desde que o imóvel tenha sido utilizado como residência do casal e o requerente não possua outro bem.

A regularização da usucapião pode ocorrer por duas vias:

• Judicial – Art. 941 e seguintes, CPC

Por meio de ação declaratória de usucapião, com a citação dos confrontantes, do proprietário registral e do Ministério Público, garantindo-se o contraditório e a ampla defesa.

• Extrajudicial – Art. 216-A da Lei nº 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos)

Permite o reconhecimento direto no cartório de registro de imóveis, com assistência de advogado e apresentação de documentos que comprovem a posse, como planta, memorial descritivo, certidões negativas e anuência dos confrontantes. Essa via promove desjudicialização, com maior celeridade e menor custo.

A usucapião realiza a função social da propriedade, promovendo a regularização de imóveis que se encontravam em situação de informalidade. Garante o direito à moradia (art. 6º, CF), assegura estabilidade patrimonial a famílias e empreendedores, e fomenta a circulação econômica, ao transformar bens anteriormente sem titulação formal em ativos registráveis, aptos a serem utilizados como garantia, objeto de financiamento ou integrados em negócios jurídicos.

Além disso, contribui para a redução do déficit habitacional e para a inclusão de áreas urbanas e rurais no sistema oficial de registro, gerando segurança jurídica e promovendo o desenvolvimento social e econômico. A usucapião não é apenas um instituto do Direito das Coisas, é um instrumento de justiça social, que materializa a função social da propriedade, corrige distorções históricas e promove acesso à cidadania. Ao garantir que a posse legítima possa se transformar em propriedade plena, respeitando os critérios legais, o sistema jurídico brasileiro assegura dignidade, inclusão patrimonial e segurança jurídica, fortalecendo o papel do Direito como agente de transformação social.

Por: Dayane Rêgo Oliveira OAB/SC 72.510 | Bertol Sociedade de Advogados