Leading Case Alemão: A Herança Digital Reconhecida pelo Tribunal Federal de Justiça da Alemanha

Leading Case Alemão: A Herança Digital Reconhecida pelo Tribunal Federal de Justiça da Alemanha
A discussão em torno da herança digital ganhou novos contornos mundiais com um emblemático caso julgado na Alemanha. A 3ª Câmara Civil do Tribunal Federal Alemão de Karlsruhe deferiu aos pais de uma garota falecida o direito de acesso pleno a todos os dados de sua conta no Facebook.

Trata-se do caso de uma adolescente, identificada pelas iniciais L.W., falecida em 2012 após um acidente em uma estação de metrô em Berlim. Seus pais ingressaram com uma ação judicial contra o Facebook após terem sido impedidos de acessar a conta virtual da filha, a qual havia sido transformada em “memorial”. As circunstâncias da morte não estavam completamente esclarecidas, havendo a suspeita de suicídio. O objetivo dos pais era justamente compreender, por meio do conteúdo armazenado na conta, se o ocorrido tratava-se de fato de um acidente ou de suicídio. Essa informação era também relevante para a defesa dos pais em processo de indenização movido pelo condutor do metrô, que alegava ter sofrido abalo emocional com o suposto suicídio da adolescente.

A falecida havia criado sua conta em janeiro de 2011, com apenas 14 anos, com a autorização expressa dos pais. No ano seguinte, ocorreu o acidente fatal. Os pais tentaram acessar a conta com as credenciais fornecidas pela própria filha em vida, mas não obtiveram sucesso, pois a conta havia sido transformada em memorial pela rede social após ter sido notificada do falecimento por um terceiro.

Com a memorialização, o acesso ao conteúdo privado da conta foi bloqueado. O conteúdo público permanecia visível e amigos ainda podiam interagir no perfil, mas mensagens, fotos privadas e demais dados pessoais tornaram-se inacessíveis. O Facebook justificou a medida com base na proteção dos direitos do usuário falecido e de seus contatos, ressaltando que a restrição visava preservar a confidencialidade da comunicação entre os usuários.

Em dezembro de 2015, o juiz de primeira instância acolheu o pedido dos pais e determinou ao Facebook que liberasse o acesso à conta, reconhecendo que a herança digital pertence aos herdeiros, e que estes podem acessar todas as contas de e-mail, celulares e redes sociais do falecido. Contudo, o Kammergericht, em sede recursal, reformou a decisão. Para o tribunal, o acesso à conta violaria o sigilo das telecomunicações, especialmente no que tange aos interlocutores da adolescente. Apesar de reconhecer que, em tese, contratos como o do Facebook são transmissíveis por herança, a Corte entendeu que o caráter personalíssimo de parte do conteúdo inviabilizaria a sucessão.

Os pais recorreram ao Bundesgerichtshof, que, em julho de 2018, reformou a decisão anterior, reconhecendo o direito sucessório dos pais ao conteúdo da conta da filha na rede social, entendendo que este decorre do contrato de utilização celebrado entre a usuária e o Facebook, o qual é transmissível por sucessão universal, conforme o § 1922, inciso 1, do Código Civil Alemão (BGB). A Corte pontuou:

“Os herdeiros têm uma ação contra o réu para lhes conceder acesso à conta de usuário do testador e ao conteúdo de comunicação nela contido. Resulta do contrato de utilização entre a filha da autora e o réu, que passou para os herdeiros por sucessão universal de acordo com o artigo 1922 (1) do BGB.”

O Tribunal ressaltou que os termos de uso da plataforma não continham disposição válida que excluísse a sucessão. Ainda, considerou que as cláusulas relativas à conta em estado de “memorial” não resistiam ao controle de conteúdo previsto no § 307, parágrafos 1 e 2 do BGB, sendo, portanto, ineficazes. A Corte entendeu também que a natureza do contrato não era altamente pessoal, de modo a impedir sua sucessão, e que não havia confiança juridicamente protegida dos interlocutores quanto à confidencialidade absoluta das mensagens após a morte da titular da conta.

Para o Bundesgerichtshof, o direito sucessório à herança digital não contraria os direitos da personalidade post mortem, tampouco o direito à intimidade do falecido ou de terceiros, nem o sigilo das comunicações, tampouco as regras de proteção de dados. Em outras palavras, foi reconhecido o direito sucessório dos pais sobre o contrato firmado entre a filha e a rede social, afastando o entendimento de que este seria personalíssimo a ponto de impedir sua transmissão, inclusive no que se refere à proteção da personalidade dos interlocutores e amigos virtuais.

A decisão enfrentou ainda posicionamento de parte da doutrina alemã, que sustenta que a transmissibilidade dos bens digitais deveria depender da natureza do conteúdo da conta. Argumenta-se que, em respeito ao direito de personalidade post mortem, certos conteúdos não deveriam ser transmitidos aos herdeiros, mas apenas a parentes mais próximos.

Por fim, o Tribunal concluiu que atribuir ao titular da conta a possibilidade de, em vida, proteger suas correspondências e arquivos íntimos – impedindo o acesso por parte dos herdeiros – é a forma mais eficiente de garantir a proteção à intimidade e à privacidade, sem que isso comprometa o sistema do Direito Sucessório. Assim, a regra passa a ser a transmissibilidade da herança digital, salvo manifestação expressa em sentido contrário por parte do titular falecido.

Fontes:

DEUTSCHLAND. Bundesgerichtshof. Vertrag über ein Benutzerkonto bei einem sozialen Netzwerk ist vererbbar. Disponível em: https://juris.bundesgerichtshof.de/cgi-bin/rechtsprechung/document.py?Gericht=bgh&Art=en&Datum=2018-7&anz=17&pos=2&nr=85390&linked=pm&Blank=1.

No Facebook, as contas transformadas em memorial são um local em que amigos e familiares podem se reunir para compartilhar lembranças após o falecimento de uma pessoa. (FACEBOOK. Contas transformadas em memorial. Disponível em: https://www.facebook.com/help/1506822589577997).

FRITZ, Karina Nunes; MENDES, Laura Schertel. Case report: Corte alemã reconhece a transmissibilidade da herança digital. Revista de Direito da Responsabilidade, Coimbra, p.525-555, 04 abr. 2019. Disponível em: http://revistadireitoresponsabilidade.pt/2019/case-report-corte-alema-reconhece-a-transmissibilidade-da-heranca-digital-karina-nunes-fritz-e-laura-schertel-mendes/.

HONORATO, Gabriel; LEAL, Lívia Teixeira. Exploração econômica de perfis de pessoas falecidas: reflexões jurídicas a partir do caso Gugu Liberato. Revista Brasileira de Direito Civil, Belo Horizonte, v. 23, n. 1, p. 155-173, mar. 2020. Trimestral. Disponível em: https://rbdcivil.ibdcivil.org.br/rbdc/article/view/523/350.

MAICHAKI, Marcos Rodrigo. Herança Digital: o precedente alemão e os direitos fundamentais à intimidade e privacidade. Revista Brasileira de Direito Civil em Perspectiva, Porto Alegre, v. 4, n. 2, p. 136-155, dez. 2018. Semestral. Disponível em: https://www.indexlaw.org/index.php/direitocivil/article/view/5038/pdf.

DEUTSCHLAND. Bundesgerichtshof. Verhandlungstermin am 21. Juni 2018, 10.00 Uhr, Saal N 004 (Saalwechsel vorbehalten) – III ZR 183/17 (Zugang von Erben auf das Konto eines verstorbenen Nutzers eines sozialen Netzwerks). Disponível em: https://www.bundesgerichtshof.de/SharedDocs/Pressemitteilungen/DE/2018/2018031.html.

Kammergericht – Tribunal de Justiça de Berlim (Tradução livre).

Bundesgerichtshof – Tribunal Federal de Justiça (Tradução livre).

DEUTSCHLAND. Bundesgerichtshof. Vertrag über ein Benutzerkonto bei einem sozialen Netzwerk ist vererbbar. Disponível em: https://juris.bundesgerichtshof.de/cgi-bin/rechtsprechung/document.py?Gericht=bgh&Art=en&Datum=2018-7&anz=17&pos=2&nr=85390&linked=pm&Blank=1.

BGB – Sigla que designa o Código Civil alemão. (DEUTSCHLAND. Bürgerliches Gesetzbuch. Disponível em: https://www.gesetze-im-internet.de/bgb/index.html.

Por: Amanda Martins | OAB/SC 60.455 | Bertol Sociedade de Advogados