A Prerrogativa de Foro sob a Perspectiva Garantista: Função Institucional, Limites ao Poder Punitivo e a Nova Tese do STF (HC 232.627/DF)

Entre o Devido Processo legal e a Função Pública

O Direito Penal, como expressão máxima do poder de coerção estatal, deve operar dentro de um paradigma constitucional de garantias. Nesse horizonte, a definição da competência jurisdicional inclusive quando se trata de prerrogativas funcionais não pode se converter em instrumento de privilégio ou impunidade, mas tampouco deve sacrificar os elementos estruturantes do devido processo legal.

A prerrogativa de foro, objeto de intensos debates na jurisprudência brasileira, ressurge sob nova leitura no julgamento do HC 232.627/DF, quando o Supremo Tribunal Federal reconhece a subsistência da competência penal originária mesmo após o término do vínculo funcional, desde que o fato esteja relacionado à função pública exercida.

O presente artigo propõe uma análise dessa nova orientação à luz do garantismo penal, abordando suas implicações dogmáticas, institucionais e processuais.

A Competência como Garantia e Limite: Lições da AP 937-QO

A jurisprudência do STF, até então consolidada a partir do julgamento da Ação Penal 937, Questão de Ordem, assentava que a prerrogativa de foro se justificaria apenas enquanto durasse o vínculo funcional e desde que o delito tivesse relação direta com o cargo exercido.

Essa restrição, longe de ser uma simples reorganização processual, representava um avanço garantista, ao restabelecer o juiz natural e combater o prolongamento artificial da competência originária dos Tribunais Superiores. A ideia subjacente era romper com a lógica dos “foros perpétuos” e realinhar o processo penal brasileiro aos valores republicanos e democráticos.

 O HC 232.627/DF: Restauração do Nexo Funcional como Critério Material

Com a decisão no HC 232.627, o STF modifica o critério anteriormente fixado, afirmando que a prerrogativa de foro subsiste mesmo após o afastamento do cargo, desde que o fato imputado tenha sido praticado durante o exercício da função e em razão dela.

Essa nova orientação tem base na concepção de que a prerrogativa não protege o indivíduo, mas sim o interesse público institucional da função, funcionando como blindagem do cargo contra retaliações e interferências indevidas, inclusive retroativas.

 A Jurisdição como Função de Garantia

Sob a ótica do garantismo penal integral (Ferrajoli), a jurisdição penal não é um instrumento de gestão do poder, mas sim de limitação jurídica de seu exercício. A competência, nesse sentido, deve ser concebida como elemento essencial do devido processo legal e não como variável pragmática a serviço da conveniência política ou administrativa.

Se a competência originária é mantida com base na função e não na pessoa, a decisão do STF pode ser compreendida como uma reafirmação do aspecto institucional do foro, contanto que sua aplicação não viole a legalidade estrita nem produza desequilíbrio entre as partes.

 Aplicação Imediata, Segurança Jurídica e Função de Contenção Judicial

A nova tese firmada tem eficácia imediata, devendo ser observada em todos os processos e inquéritos em curso, inclusive os iniciados após o desligamento do cargo público. No entanto, em respeito ao princípio da confiança legítima e da estabilidade processual, o STF determinou a preservação de todos os atos processuais praticados sob a vigência da jurisprudência anterior.

Essa ressalva é compatível com os postulados do Estado de Direito: não se trata de um retrocesso, mas de uma mudança interpretativa fundada na coerência institucional, que deve ser implementada com o cuidado técnico necessário para evitar violações a garantias processuais já consolidadas.

 Repercussões Sistêmicas: Neoconstitucionalismo, Poder Punitivo e Estratégias Defensivas

A decisão do STF repercute além da técnica processual. Ela reabre o debate sobre:

  • O alcance do foro especial em regimes democráticos;
  • A tensão entre a igualdade jurisdicional e a proteção institucional das funções públicas;
  • A necessidade de controle vertical do poder punitivo, inclusive no âmbito da competência jurisdicional.

Do ponto de vista da defesa técnica, a nova interpretação exige atenção redobrada na identificação do nexo funcional, na formulação de exceções de incompetência, e na análise sobre a eventual necessidade de remessa dos autos aos Tribunais competentes. A atuação processual, nesse novo cenário, deve ser estratégica, mas também rigorosamente fundada em garantias.

A reafirmação da prerrogativa de foro com base no vínculo funcional e não na mera titularidade do cargo pode ser lida como um movimento pendular entre a efetividade da jurisdição penal e a necessidade de resguardar a função pública de ingerências indevidas.

Sob uma perspectiva garantista, o importante não é a extensão ou redução da prerrogativa em si, mas a sua justificação constitucional e a forma de aplicação concreta, que não deve resultar em desigualdade, morosidade excessiva ou impunidade seletiva.

A competência penal, como toda estrutura do processo penal, deve ser expressão de racionalidade, previsibilidade e contenção do arbítrio, assegurando não apenas a proteção do Estado, mas também a proteção contra o Estado núcleo essencial da jurisdição em um Estado Democrático de Direito.

Por: Dayane Rêgo Oliveira OAB/SC 72.510 | Bertol Sociedade de Advogados